domingo, 10 de maio de 2009

Moradia Gratuita para cidadão de rua, no Centro de São Paulo

Ele era um homem livre do sertão nordestino. Bebia água barrenta no açude em companhia das cabras e vacas magrelas. Espantava os urubus impacientes para que o pobre bezerro morresse em paz, por inanição. Embrenhava-se pelas quiçaças e grotões a caça de mel de abelhas. Mastigava um fruto do ingá, comia umas folhas viçosas de beldroegas a beira do brejo, chupava umas frutinhas de Maria-preta, aquela que também se chama de catinga-de-bode, alguns imbus, tudo que o sertão podia oferecer gratuitamente ao guerreiro nordestino. Repousar e sonhar, as sombras do imbuzeiro, embalado pelo canto da pomba juriti era um direito natural. Não se pagava imposto para morar, para circular pela caatinga, para correr atrás dos camaleões entre os mandacarus, com a boca salivando, aguado por um naco de carne com sal assada, mal-e-mal nos tições.
A seca maldita causadora da fome, da solidão da alma, do isolamento social, do desalento de uma luz no final do túnel, não dava trégua e tudo isso forçava o nordestino a abdicar dessa liberdade natural. “Vou meter os pés na estrada e cai nesse mundão de Deus. Não sou filho-d’uma-égua para virar comida de urubu nesse lugar seco e miserável.”
Era assim, numa manhã qualquer, que o nordestino retirante, se largava no mundo em direção ao sul. Nas costas, levava um bisaco com farofa e um naco de carne salgada de camaleão. Uma alpercata de couro-cru aos pés, caminhando na direção do sul e o que viria pela frente, só a Deus pertencia.
O nosso nordestino, aquele que eu escolhi ao acaso, agora era cidadão da Capital de São Paulo. Continuava isento dos impostos do direito de sobreviver, não ouvia mais o canto meloso da Juriti, não corria mais atrás de lagartos, mas, como se diz por ai, “trocou seis por meia dúzia”, né mesmo?
Morava sob a proteção da carroça de coleta de lixo reciclável, na Barão de Itapetininga, no centro da cidade. O segurança era o cão vira-lata, amigo fiel, que se ajeitava aos pés do seu dono, quando ele, ao amanhecer, se sentava numa cadeira para ler o "Jornal do Centrão", de distribuição gratuita.
A mulher-camelô, do serviço de cafezinho de rua, era sempre pontual. O privilegiado morador pagava vinte cinco centavos por um copinho descartável cheinho de café. Na hora do almoço, chegava o marmitex, e ao crepúsculo, começava o serviço pesado de coleta e a entrega de todo o lixo reciclável, coletado nas ruas do centro. Na madrugada, findo os serviços, o nordestino cansado voltava a dormir sob a carroça, por algumas horas, enquanto o cachorro tomava conta de tudo. Ninguém podia aproximar-se de um pedaço de papelão qualquer sobre a carroça com os varais para cima. Ao nascer do sol, momento em que as pessoas surgem como formigas dos buracos, o trabalhador de rua se levantava e sentava na velha cadeira. Às vezes, algum amigo João-ninguém de rua sentava na outra cadeira para bater papo, enquanto esperavam a mulher dos seios grandes e descobertos, com o cafezinho.
Esse era o momento do nosso vigia canino, aproveitar para dormir, pois passou a noite trabalhando para o seu amado dono.
Assim era a vida de um cidadão, verdadeiramente privilegiado. Não pagava aluguel porque a rua é pública; Não pagava a Eletropaulo porque a iluminação da rua é pública; Não pagava IPTU porque, devido a pequena metragem da área da sua moradia móvel, gozava da isenção do imposto. Banheiro? Nos bares ou na estação do metro. Banho? Nas cachoeiras superficiais da Praça da Sé, mas, somente nos dias muito quentes. Sexo? No centro de São Paulo, a noite não é uma criança, mas sim, uma adolescente.
Todos os moradores de ruas são invisíveis. Quem é que cumprimenta um morador de rua? Alguém já viu um transeunte parar e: “Bom dia senhor mendigo ou senhor morador de rua!” Eu nunca vi, aliás, acabo de me lembrar, que eu mesmo, nunca cumprimentei uma dessas criaturas humanas. É por isso que eu afirmo, categoricamente, que elas são invisíveis. Moradores de ruas, mendigos, menores abandonados, só se tornam visíveis para quem têm uma câmera fotográfica nas mãos. Foi assim que eu descobri que eles existiam. Os olhos das câmeras não têm filtros com critérios censuráveis ou preconceituosos.
Atualmente, eu não o vejo mais o nosso nordestino nas ruas do centro. Dizem que o Prefeito decretou o despejo dele da rua Barão de Itapetininga, fato que se realizou sob os protestos do cachorro amigo que, também, já estava ameaçado pela malfadada carrocinha de cães de ruas. Imagino que o pobre homem não devia ter o tal cobiçado título de eleitor. Políticos são cegos para cidadãos sem título de eleitor, em época de eleição, mas após as eleições, eles também ficam cegos para aqueles cidadãos eleitores que votaram neles. Bem faz a Juriti de continuar no sertão, cantando no galho do umbuzeiro.
Josué

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